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Mapa revela precariedade e desafios de mobilidade de moradoras do Coque
A pesquisadora, nascida na Nicarágua, vivenciou e mapeou o Coque, conseguindo relatos dos obstáculos enfrentados por mulheres nos seus trajetos.
Maria Amanda Elvir
Áreas de via pavimentadas do Coque
Por Douglas Fernandes
As dificuldades enfrentadas pelas moradoras da comunidade do Coque, no bairro de Joana Bezerra, na área central do Recife, em seus vários deslocamentos pela capital pernambucana são registradas pela arquiteta Maria Amanda Martínez Elvir, em sua dissertação de mestrado “Mulher e mobilidade urbana, uma perspectiva de classe: Retratos da mobilidade de mulheres da comunidade do Coque em Recife”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da UFPE. A pesquisadora, nascida na Nicarágua, vivenciou e mapeou o Coque, conseguindo relatos dos obstáculos enfrentados por essas mulheres nos seus trajetos.
“A pesquisa tenta descrever e refletir sobre a mobilidade urbana de um grupo de mulheres que moram em distintas partes do Coque. Nos relatos, se entrelaçam histórias de vida, dores e alegrias”, explica Amanda. A autora fez entrevistas que registraram o dia a dia das moradoras participantes se baseando nos lugares que visitam durante a semana e no fim de semana. Foram registrados os motivos das visitas, o meio de transporte utilizado, as experiências vividas enquanto se deslocavam e o tempo gasto nestes deslocamentos.
“A comunidade foi dividida em setores, pois o Coque é espacialmente heterogêneo. É importante reconhecer as características do espaço, tanto físicas quanto simbólicas, de onde estas palavras são ditas. Os relatos se diferenciaram entre as mulheres que vivem nos becos, nas ruas de terra de sete metros de largura e nas ruas calçadas de sete metros de largura. A proximidade ou distanciamento das moradias da Estação Joana Bezerra também influenciou o relato”, ressalta.
A autora observa que o tempo de deslocamento das moradoras do Coque varia se elas moram em um beco, viela ou rua, assim como a distância das suas moradias da parada de ônibus. Na pesquisa, foi calculado o tempo desde quando as entrevistadas saíam de casa até quando chegavam ao seu destino final. A mobilidade nas áreas de beco foi identificada pela pesquisadora como a “mais precária”.
“O problema é que, quando pensamos em tempo, priorizamos o trajeto casa-trabalho e não incluímos outros deslocamentos diários que são realizados por mulheres. Os deslocamentos às áreas de serviço não são naturalmente femininos. Esses deslocamentos são feitos por mulheres porque socialmente fomos responsabilizadas por essas tarefas como se constituíssem parte da nossa natureza”, explica a autora.
Esse tempo, ainda segundo Amanda, depende se a mulher está grávida, é jovem, criança, idosa etc. Também depende do clima, levando em conta se a rua está alagada ou não, ou se o trajeto é realizado em ruas ou becos com esgoto a céu aberto. Quando chove, alguns trajetos “são feitos pela memória, na lembrança das ruas secas”. O deslocamento em ruas alagadas também representa medo devido ao contágio de doenças como hepatite e leptospirose por conta da falta de saneamento básico. O tempo varia dependendo dos motivos do deslocamento, se for para a creche, para a cadeia para visitar um familiar, ou se for para buscar comida na maré.
“Se for para falar quantitativamente, uma entrevistada que trabalha no bairro da Madalena tem gastado quatro horas e meia no seu deslocamento. É necessário levar em conta que ela mora nas áreas de beco, sua casa está distante da parada de transporte público, ela se desloca em horários de pico e seu tempo de espera do transporte é prolongado”, exemplifica.
Como explica a autora, o fato de a comunidade estar próxima do Terminal Integrado de Joana Bezerra não contribui, necessariamente, na mobilidade das moradoras do Coque. Inclusive, uma pessoa morando nas áreas de beco, próximas à beira da maré, pode chegar a caminhar um quilômetro até a parada de ônibus mais próxima.
As emergências médicas esbarram também nos becos e ruas do Coque. Quando algum morador passa mal, é transportado em carro de mão ou é acompanhado a pé por um familiar até a avenida mais próxima para pedir socorro. “É a negação à saúde, pelo acesso físico e social, para quem mora em áreas de pobreza”, afirma a autora.
A autora verificou que o lazer das residentes também é prejudicado pela mobilidade. Geralmente, as moradoras têm duas opções: esperar até as 5h da manhã para subirem no primeiro ônibus do dia ou irem de táxi durante a madrugada, serem deixadas no viaduto Capitão Temudo e seguir o resto do percurso, caminhando ou correndo para casa. “As atividades de lazer estão comprometidas durante a noite, pois nesse horário ou mesmo durante o dia muitos táxis não entram no Coque”, destaca a autora.
E com os deslocamentos vem a sensação de insegurança. Então, a pesquisadora propôs um exercício para entender o conceito de medo das mulheres entrevistadas. Ela deveriam se imaginar sozinhas em uma rua escura e falar a primeira coisa que viesse à cabeça, quando ouvissem a palavra medo. De acordo com Amanda, as respostas que se repetiram com frequência foram “polícia” e “bala perdida”. “A polícia se tornou um motivo para modificar um trajeto na comunidade devido à violência que policiais exercem com os moradores e as moradoras do bairro do Coque”, afirma.
TRANSPORTE | As experiências no transporte público relatadas pelas moradoras no deslocamento com compras e com seus filhos e parentes idosos foram abordadas no trabalho. “Para qualquer pessoa, é complicado se deslocar de ônibus cuidando de uma criança, um idoso ou carregando compras. As crianças passam pela penosa situação de terem que se arrastar no chão para passarem pela catraca e não pagarem passagem”, afirma.
Muitas mulheres relataram levar pancadas e caírem dentro do ônibus durante a gravidez. Por outro lado, existe um elemento, segundo a autora, que coloca essas mulheres em grande desvantagem na hora de enfrentar possíveis acidentes nos meios de transporte que seriam “as condições de trabalho oferecidas às populações que vivem na pobreza”.
A pesquisadora argumenta que, sem acesso à educação, essas massas de população são obrigadas a exercer formas de emprego que dependem do seu corpo e do estado físico. “Depois de jornadas exaustivas de trabalho e se deslocando no pior sistema de transporte das cidades, essas mulheres estão ainda mais propensas a acidentes pelo nível de desgaste físico exigido nos seus trabalhos. Essa condição de classe aderida ao gênero e o deslocamento com sacolas, crianças ou idosos deixam essas mulheres diante de uma enorme vulnerabilidade física e social”, ressalta.
Por necessidade, grande parte das mulheres gestantes entrevistadas trabalhou até os nove meses de gravidez. Muitas realizaram trabalho doméstico até o ultimo mês de gestação. “Novamente, entram fatores que vulnerabilizam esse público, pois elas têm que enfrentar o esforço físico que exige o trabalho doméstico – aquele remunerado e o que realizam nas suas casas –, a gravidez e um sistema de transporte precário”, destaca.
Entre os relatos, surgiu a história de uma mulher que ficou presa na borboleta do ônibus, tendo que ser retirada com uma serra. E de uma outra que caiu de costas no segundo mês de sua gestação. “As duas, momentos depois do acidente, continuaram seu trajeto às casas onde fariam faxina para conseguir levar dinheiro para casa”, relata.
PESQUISA | Mulheres idosas, jovens, meninas, grávidas, lésbicas, travestis, empregadas domésticas e vendedoras de rua foram entrevistadas para compor vários retratos da mobilidade dessas pessoas no trabalho, orientado pela professora Edvânia Tôrres Aguiar Gomes, do Departamento de Ciências Geográficas da UFPE, e coorientada pelas professoras Maria de Fátima Gomes de Lucena, do Departamento de Serviço Social da UFPE, e Maria de Lourdes Zuquim, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP). “Eu não quis focar a pesquisa a uma condição particular por conta da riqueza e complexidade que observei em campo. A importância dessa complexidade ajuda a refletir sobre a não homogeneidade da pobreza e ao reconhecimento da enorme diversidade dos distintos setores sociais que convivem na cidade”, destaca.
Segundo a pesquisadora, o trabalho é uma tentativa de direcionar a palavra para os grupos oprimidos, legitimar e registrar uma comunicação oral ainda não reconhecida. “A pesquisa não tem o propósito de gerar conclusões e afirmações absolutas. Esse é um convite para refletir e pensar em conjunto. E é uma tentativa de explicar os processos e mecanismos de segregação através do espaço”, observa.
Em relação à mobilidade urbana em áreas de pobreza, a autora afirma que seria importante considerar a localização dos bairros com as características físicas do território. Isso porque ela gera padrões de mobilidade específicos que não poderiam ser generalizados. E é necessário considerar se o bairro está em uma área plana, morro, beiras de rio, canal ou trem, e se está localizado nas áreas centrais ou periféricas da cidade.
Para Amanda, a desconstrução do sujeito mulher na sua vivência no Coque criou vários cenários e várias formas de ser mulher com mobilidades distintas conforme características tais como a raça/etnia, faixa etária, renda, orientação afetiva. “Ainda que todas compartilhassem o fato de viver em um mesmo bairro em situação de pobreza. A complexidade do real me leva a lançar um convite para se realizar futuros estudos focalizados nessas distintas formas de cidadania e de se relacionar com o espaço”, afirma.
MOBILIDADE | A pesquisadora explica que a mobilidade tem uma dimensão espacial e social e que a cidade é um espaço determinado onde as pessoas realizam vários tipos de mobilidade como a espacial, social, existencial, entre outras. Para entender o espaço e seu uso, faz-se necessário entrar na sua dimensão simbólica e material. “Na sociedade de classes em que vivemos, esses acessos são dados ou negados de acordo com a classe social, raça/etnia e gênero, gerando assim relações particulares com o uso e apropriação do espaço. A própria mobilidade urbana está influenciada pelo valor social do espaço que habitamos”, ressalta.
Segundo a autora, as mulheres e suas necessidades são excluídas do processo de planejamento urbano na América Latina. “Se a história oficial do mundo, e produção de conhecimento de muitas pessoas têm denunciado a exclusão das mulheres em esferas sociais, políticas e econômicas, por que na produção do espaço urbano seria diferente? Por que o espaço urbano seria uma exceção?”, questiona.
Como aponta Amanda, as distintas posições que as mulheres ocupam em um sistema de produção determinado, juntamente com outros fatores, determinam o tipo de opressão que elas experimentam. E o valor simbólico do espaço em que se vive é um dos aspectos que agrava ainda mais a opressão. “Os sistemas de transporte, seu acesso e suas tecnologias, não segregam pessoas de classes sociais, raça e gêneros distintos de forma isolada. A segregação e a exclusão através da mobilidade urbana pertencem a outro sistema de controle e opressão global, regional e local em função da dominação de uma classe para outra”, finaliza.
Mais informações
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano
(81) 2126.8311
mduufpe@gmail.com
Maria Amanda Martínez Elvir
amarelv@gmail.com
Crédito da foto: Maria Amanda Elvir