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Travestis negras se unem para combater violência e permanecerem vivas no Brasil
Pesquisador alerta que negligências institucionais e preconceitos sociais dão à nação brasileira o título de “país que mais mata pessoas LGBTs no mundo”
Henrique Costa é doutor em Serviço Social e constatou em sua tese o cuidado entre pares como forma de resistência da população T, trans e travestis, no país
“Sonho que a sociedade, não só do Brasil, como do mundo, veja nós LGBT [Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e outras identidades/sexualidades] como normal. Não tem pra quê ninguém querer ser melhor do que ninguém” é o desejo de Jovanna, travesti negra e uma das vozes erguidas na tese “‘Tudo Que Nóis Têm É Nóis’: violência e cuidado na trajetória de travestis negras”, do pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Henrique Costa.
A pesquisa, realizada no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS) com orientação da professora Mônica Rodrigues, traz, por meio de entrevistas com quatro travestis negras periféricas da Região Metropolitana do Recife, a trajetória de cuidado e de combate à violência que elas vivenciam. Preconceitos e exclusões nos espaços de educação e saúde, expulsão da família, prostituição e refúgio em outros países fazem parte do cotidiano das travestis negras nordestinas, como enfatiza o trabalho de Henrique.
“A princípio, havia a previsão de serem realizadas cinco entrevistas. Uma das interlocutoras precisou se refugiar em outro país, em função de ameaças de morte que havia sofrido em decorrência de seu trabalho em favor das pessoas LGBTI+ profissionais do sexo. As travestis negras, ao longo dos anos, seguem sendo perseguidas e violadas pela sociedade racista e transfóbica, que insiste em desumanizá-las”, salienta o pesquisador.
Negro, gay e vindo do interior, mais precisamente do município de Limoeiro, agreste pernambucano, o doutor em Serviço Social reforça que “a articulação de dois ou mais marcadores de desigualdades produz um arranjo robusto, dinâmico e multifacetado de violências e subalternidades”. Para ele, as travestis negras são alvos desumanizados pela hierarquização que existe nos chamados “valores civilizacionais”.
“Sua ética e forma de viver são consideradas bárbaras, impondo em seu lugar padrões eurocêntricos [vindo dos colonizadores europeus] como o horizonte de civilização e, em última instância, de humanidade. Aos outros, impõe-lhes a guerra cotidiana pela sobrevivência, em territórios nos quais a dor de quem sangra e chora tem importância a depender de quem sangra e chora”, sinaliza a tese.
A obra de Henrique Costa evidencia argumentos de intelectuais fundamentais para se entender e dialogar, atualmente, sobre sociedades colonizadas, como a brasileira. Frantz Fanon (“Os Condenados da Terra”), Chimamanda Nzgozi (“O Perigo de Uma História Única”), Sueli Carneiro (“A Construção do Outro Como Não-Ser Como Fundamento do Ser”), Grada Kilomba (“Memórias da Plantação”), Vilma Piedade (“Dororidade”) e Berenice Bento (“Brasil: país do transfeminicídio”) são alguns nomes.
De acordo com a tese de Costa, existem articulações, desde o século XVI, para a exclusão e exploração de seres enquadrados como subumanos, a exemplo de pessoas negras, indígenas e LGBTs. O pesquisador relata que o cuidado entre travestis negras revela a violência colonial capitalista contra essas pessoas e a resistência que elas fazem diante da desumanização.
“As frequentes violências pelas quais travestis e transexuais são submetidas, pela sociedade e nas instituições, fazem emergir as redes de apoio – construídas entre travestis ao longo dos anos – que seguem sendo o primeiro e, às vezes, o único acesso que elas têm aos cuidados. Nesse movimento secular, naturalizado ao longo dos anos, se forjou um conjunto variado de estratégias de rebaixamento da vida, da intelectualidade e de todas as produções e performances que afrontem o indesejado padrão de civilização imposto via colonização”, salienta o trabalho de Henrique.
Segundo o pesquisador, a organização e o desenvolvimento das redes de apoio e de cuidado das travestis negras inserem elementos de vivências sociais diferentes das dinâmicas existentes na “lógica individualista e de disputa preconizada pelo neoliberalismo”.
“Elas coletivizam a alegria da conquista e afrontam a transfobia, inserindo outros elementos na sociabilidade. Apesar de as redes serem atravessadas por precariedades e riscos, e por meio delas ficar evidente a existência da negação de direitos, também fica evidente que elas revelam e resgatam o cuidado ancestral, parte constitutiva das relações entre travestis no Brasil”, ressalta.
Henrique adverte, também, sobre a necessidade de diálogos, a respeito das vivências de pessoas trans e travestis, que estejam além da exploração de violências e precariedades. No percurso de sua pesquisa científica, o cuidado estabelecido entre elas foi reforçado como um meio de obter outros olhares científicos.
“Há um roteiro quase único que conta a trajetória dessas pessoas nas produções científicas: o da violência e precariedade. Entretanto, as relações que eu tenho conseguido estabelecer com travestis revelaram outra dimensão importante em seus trânsitos: o cuidado que se estabelece entre elas. A necessidade de contar outras histórias, nos termos da intelectual Chimamanda Nzgozi, levou a gente a pesquisar sobre o cuidado entre travestis negras”, atesta.
No percurso, o pesquisador endossa que foi preciso “ficar atento a outras linguagens, significados e interações que não as convencionalmente evidenciadas pelas produções científicas”. Costa define, “o seu olhar científico”, como “um olhar atento e disposto a ser conduzido para outros circuitos”.
Essa perspectiva científica, do pesquisador e doutor pela UFPE, fez com que ele conseguisse “perceber que apesar de haver uma relativa lacuna sobre afetos, cuidados e alianças estabelecidas entre travestis na academia [científica], esses gestos compõem secularmente a estratégia ancestral de sobrevivência entre travestis”.
Para Henrique, tem sido “o cuidado entre pares, com todas as fragilidades e potências que isso possa significar, o responsável pela manutenção da vida desse grupo que secularmente tem sido alvo de violências multifacetadas e invisibilizadas”. O doutor em Serviço Social da UFPE conceitua esse cuidado como um ato de resistência e falta de submissão diante de práticas que não as querem vivas: racismo e transfobia.
VOZES OUTRAS – Em um dos depoimentos a respeito da elaboração de sua tese, Henrique Costa argumenta ter optado “por ouvir os ruídos produzidos pela fala de sujeitas poucas vezes valorizadas, legitimadas ou validadas”.
Sem temer novas descobertas, o pesquisador diz ter buscado abandonar “o paradigma colonial, que institui quem sabe e quem acha que sabe”. Nessa tarefa, as teorias de sua tese sustentam “um caminho instigante, e com muitos desafios, de ouvir, ler e dialogar com vozes outras, não legitimadas pelo projeto colonial”.
“Caminhei na produção deste trabalho ao lado de travestis negras oriundas de áreas periféricas da Região Metropolitana do Recife. Os seres denominados como ‘condenados da terra’, submetidos ao projeto de morte imposto pela violência colonial, que lhes reserva a dor, a violência, a fome e a miséria”.
No trajeto de elaboração da tese, Henrique argumenta que buscou destrinchar “um padrão calcado no racismo, sexismo, LGBTIfobia e tantas outras formas de dominação, opressão e exploração, impressas pelo capitalismo colonial”. Segundo ele, apesar de existir esse cenário, as travestis negras, ouvidas no seu trabalho, demonstram ir além do estabelecido.
“Aquilo que seria um projeto sem oposição, ou uma história puramente de sucesso, foi e é frustrado pela força subversiva daquelas que, por escolha, condição biológica ou mesmo de maneira inconsciente, reivindicam outras configurações de corpo, de desejo e racionalidade”, constata o pesquisador.
Pelos relatos da tese de Costa, “a história de sucesso do sistema colonial” enraizou valores na sociedade brasileira que permitem violências institucionalizadas contra determinadas populações, a exemplo de pessoas negras travestis. Isso acontece de modo naturalizado e gera marcas seculares. “A resistência/reivindicação pelo direito de viver é uma marca na trajetória dessas pessoas, por meio do cuidado entre pares como estratégia para sobrevivência”, reforça Henrique.
ÉTICA TRAVESTI – As palavras de Elza, “uma das vozes negras travestis erguidas” no trabalho de Henrique, demonstram formas de resistências utilizadas pela população travesti e transexual no combate às violências existentes na sociedade. Ela diz: “a gente meio que tem uma ética quando se torna travesti. Talvez uma ética travesti, que é pensar coletivamente. Pensar não somente para nós mesmas, mas para todas que estão em nossa volta”.
Outra forma de resistência encontrada pela “Ética Travesti” – apontada por Elza, travesti negra de 28 anos de idade, estudante de graduação na área de Educação, que trabalhou como arte-educadora, educadora social e até profissional do sexo na Europa – é o incentivo à educação.
“O Estado devia abrir cursos. Criar acompanhamento na escola para evitar violência contra travesti, que permitisse que a gente se formasse pra que a gente não precisasse começar logo cedo na prostituição. Tem que ter políticas públicas. Curso técnico, faculdade com mais acesso também. Cursos que possam fazer seu próprio emprego”, almeja Josy – “outra voz travesti negra presente” na tese da UFPE. Josy fez curso técnico em enfermagem, mas não conseguiu atuar na área, trabalhou com prostituição, teve passagem no sistema prisional e tem o sonho de ir para a Europa buscar melhorias em sua vida.
Beatriz, “mais uma voz negra travesti erguida” no trabalho de Henrique, conta que o apoio da “Ética Travesti” é fundamental no estímulo ao desenvolvimento educacional e às melhores condições de vida da população trans e travesti. Ela, que atualmente cursa graduação na área de Ciências Sociais Aplicadas e já trabalhou como profissional do sexo, é ativista em favor de causas feministas e atua como educadora sexual em Organização Não Governamental (ONG).
“A gente tem mesmo essa onda de cuidado. A gente faz essa corrente de apoio, e elas me dão super apoio. Inclusive, muitas que estão viajando, fora do Brasil, fazendo programa e dizem que eu estude mesmo. Dá os parabéns, que a gente merece, que a gente consegue também. Muitas dizem que ficam felizes, a maioria, de estar vendo uma trans na universidade. No meio LGBT, as pessoas ficam muito orgulhosas, elas ficam felizes de ver. E eu também fico, claro, porque estamos escrevendo outras histórias acerca de nossas experiências”, relata.
Mesmo com os estímulos e incentivos da “Ética Travesti”, as dificuldades fazem com que obstáculos surjam na vida das mulheres trans e travestis. “Eu passei a questionar: será que eu vou conseguir? Uma travesti, negra da periferia, sem ninguém influente pra abrir os caminhos, pra indicar a nada? Inclusive, algumas pessoas ao meu redor também ficaram se questionando”, diz Elza sobre o fato de que é preciso não só ter acesso à educação, mas também ao mercado de trabalho.
Outro aspecto significativo a ser superado, que a “Ética Travesti” busca, é a violência institucionalizada, seja dentro de instituições educacionais e de saúde seja na instituição familiar ou de trabalho. Jovanna, “voz travesti negra erguida” na tese da UFPE, exemplifica esse cenário. Dentro de sua família, ao perceberem suas diferenças de gênero, a violência se tornou cotidiana.
“Meus irmãos eram todos homens. E, assim, o mais velho era o que mais me batia, mas me batia mesmo. Uma vez ele me bateu muito e disse: ‘vai apanhar pra aprender a ser homem, seu viado safado’! Isso eu com 12, 13 anos. Eu não suportava aquela sofrência de estar sendo espancada dentro da minha própria casa”, lamenta Jovanna, que hoje tem mais de 35 anos de idade, saiu de casa e da escola cedo, por causa das violências sofridas, e não conseguiu terminar os estudos fundamentais do ensino formal.
Pelos relatos de Jovanna, os abusos da sociedade refletem nas atitudes de falta de apoio em instituições educadoras, como a família e a escola. “A professora via os outros alunos me abusando. Eu acredito que até no dia que eles me bateram ela também viu. E, quando eu ia reclamar, disse que se eu me comportasse meus colegas iriam parar. Aí eu perguntei, ‘me comportar como?’ Ela disse que eu sabia como era pra me comportar. Pronto, foi naquele ano que eu saí da escola e nunca mais quis voltar”, desabafa a travesti, que passou pelo sistema prisional, privada de liberdade, e trabalhou como profissional do sexo em lugares como Recife, São Paulo e países da Europa.
Essas “vozes negras de travestis erguidas”, para Henrique Costa, constituem “o conjunto de esforços, resultado de mobilizações e resistências empreendidas por travestis ao longo da história”. A “Ética Travesti” integra “a cumplicidade subversiva operada por travestis negras, que insistem em se manter vivas em meio ao caos”. O doutor em Serviço Social acredita que elas sintetizam “suas lutas e os avanços com direito aos sonhos e as mudanças defendidas ancestralmente”.
A tese de Costa sinaliza a busca das travestis negras no lema de “ser feliz a partir dos encontros, dos sorrisos, das trocas e do cuidado” e gerar “uma das ofensivas contra esse sistema, político e econômico, que as quer mortas e tristes. Que naturaliza e nos faz acreditar que são as desgraças, não os sorrisos, que definem as travestis no Brasil”. Henrique afirma que “contra esta compreensão, é preciso reafirmar: por mais contraditório que possa parecer, há afetos, abraços e acolhimento entre as que foram conduzidas pela violência”.
Não à toa, o título do trabalho de Henrique chama - assim como a música “Principia” do cantor e compositor Emicida enfatiza - atenção para “o ‘nóis’”, sujeito político coletivo de pessoas marginalizadas e inferiorizadas por elas serem quem são. “É fundamental para que continuemos vivos, apesar das violências. Chama atenção também para a necessidade de fortalecer a noção de que sozinhas(os) somos derrubados(as) com mais facilidade frente a um sistema injusto e desigual”, declama o doutor.
Costa resume que sua tese constatou “a ética do cuidado como patrimônio insubstituível para manutenção da vida e dos sonhos” de pessoas que têm, secularmente, a humanidade negada.
PÓDIO DA VIOLÊNCIA – “O Brasil é campeão em mortes e assassinatos de pessoas trans e travestis” tem sido manchetes, em veículos de comunicação e redes digitais, por quase 15 anos. “É uma situação devidamente exposta pelas pessoas que fazem parte da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), que, em seus relatórios anuais de morte de travestis e transexuais, têm denunciado que o Brasil segue sendo o país que mais mata travestis e transexuais no mundo”, adverte o pesquisador da UFPE. Os relatórios produzidos pela Antra denunciam também que as travestis negras são “aquelas que mais morrem em função do genocídio”, alerta Henrique Costa.
Essa realidade mostra, acredita o doutor em Serviço Social, que existem “condições sociais e econômicas impostas, a partir do sistema capitalista-colonial e racista, alimentando a compreensão de que violência, racionalidade e materialidade carregam muito mais potência para a manutenção da vida e o manejo de mudanças sociais do que o amor”.
Na sociedade brasileira há, de acordo com Costa, “relações sociais que recorrem ao desamor como estratégia de manutenção da violência colonial”. Ele diz ser “uma concepção, forjada a partir da dura e concreta realidade, imposta especialmente ao cotidiano de pessoas negras, que é absolutamente importante para a manutenção de relações hierárquicas de poder e desumanização”.
Outra realidade, exposta pela Antra e pelo trabalho na UFPE, é a constatação de que 90% de pessoas travestis e transexuais têm a prostituição como única possibilidade de manutenção da vida. Além disso, a expectativa de vida da população T, trans e travesti, é de aproximadamente 35 anos.
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Henrique Costa - E-mail: henriquecosta2114@gmail.com
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